PVC na Piauí – Parte 1

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Paulo Vinícius Coelho é um dos melhores comentaristas esportivos da televisão. PVC vem de uma escola nova de jornalistas, que evita os romantismos e trata dos assuntos como eles são, ou seja, fatos. Sua memória privilegiada ajuda na composição de um trabalho bem embasado que chega a constranger alguns colegas seus mais antigos e mais preocupados em rememorar os feitos de Garrincha e Nilton Santos do que aceitar que o futebol de hoje mudou, e muito. Abaixo compartilho com vocês a primeira parte da matéria feita pela Revista Piauí com o jornalista paulistano. O texto é de João Moreira Salles e foi publicado na edição de Fevereiro da revista. Em breve á parte dois. Bom proveito.  

OHN 

PVC vê Futebol

O Estádio Monumental de Lima, no Peru, poderia estar cravado num vale da lua, se a lua fervesse. Quem está nas arquibancadas e olha para cima vê, colada ao anel superior, uma barreira de montanhas feitas de pedra e pó. O sol atinge a parede de rocha, é defletido e vai fustigar o gramado. Em novembro de 2007, o exército de repórteres que estava ali para cobrir o jogo Brasil x Peru pelas eliminatórias da Copa do Mundo buscava sombra. Havia uma única exceção.Do alto das cabines de rádio, no último andar da arena, percebia-se que lá embaixo, minúscula, uma estranha forma humana executava uma coreografia extravagante. Alto, magro e dono de uma enorme corcunda, um homem avançava a passos de ganso sobre as riscas de cal que demarcam o campo. A perna direita erguia-se reta, permanecia suspensa uma fração de segundo e tombava à frente. Lembrava um soldado soviético desfilando diante do mausoléu de Lênin. O corcunda cumpriu o trajeto desde a bandeirinha até a linha do meio-de-campo. Parou, refletiu um instante e seguiu até o córner oposto. Fez então um giro de 90 graus e continuou a marcha, agora se equilibrando na linha de fundo. Cobriu assim as duas dimensões do campo: 82 passos para o comprimento, 60 para a largura.Concluída a missão, a miniatura se pôs a correr em direção à arquibancada. Galgou-a com crescente dificuldade, primeiro de dois em dois degraus, em seguida de um em um, e olhe lá. À medida que se aproximava das cabines, sua forma foi se esclarecendo. Não era propriamente um homem-corcunda, mas um homem-tartaruga. O apêndice que dava relevo às suas costas era uma mochila à beira de explodir. Pesava 10 quilos.

Bufando, já quase sem ar, Paulo Vinicius Coelho — ou PVC, como é mais conhecido o comentarista da ESPN-Brasil — invadiu a cabine onde estava seu colega João Palomino e sentenciou: “Nos comeram cinco passos na largura do campo”. Acabara de confirmar, empiricamente, a informação que circulava entre os jornalistas: o técnico do Peru havia diminuído as dimensões do campo para dificultar o jogo do Brasil. A imprensa tomara a informação como dada. PVC decidiu apurar. Foi o único.

Dez dias mais tarde, no Rio de Janeiro, o técnico do Botafogo, Cuca, abriu uma conversa sobre Paulo Vinicius Coelho sem medir palavras: “Eu fico puto com o PVC”. Membros da comissão técnica arregalaram os olhos. “Ele mostra o jogo. Ele desenha aqueles bonequinhos na prancheta, diz que o meu volante vem por aqui, que o outro avança por lá, publica o esquema no jornal e entrega o meu time para o adversário. A coisa principal é saber ler o esquema tático, e isso ele faz muito bem, infelizmente. Eu prefiro que ele faça isso só com o time dos outros. Dá o recado a ele.” Cuca admira PVC. Não é o único. Paulo Vinicius Coelho é a figura de proa de uma nova geração de comentaristas que está mudando a forma de analisar o esporte. Para essa turma, gente nascida no final dos anos 60 ou início dos 70, os fatos valem mais do que a exaltação dos afetos.

Quando se menciona o nome de PVC, a primeira palavra que ocorre à maioria das pessoas é “memória”. De fato, a dele é prodigiosa. Um incauto pensaria que ele exerce bem a função porque foi ungido pela graça divina. Assim como Gisele Bündchen tem suas curvas, PVC tem seu hipocampo. É comum os admiradores se aproximarem dele para comentar a sua exuberância mnemônica. Em São Paulo, antes de entrar numa sala apinhada de alunos de jornalismo que, excitados, o esperavam como se ele fosse um Robinho, um homem o cutucou e soltou o comentário de praxe: “Você tem uma memória extraordinária, né? Muita leitura…” PVC sorriu meio sem jeito: “É, eu leio bastante. Mas tem um pouco de trabalho também”.

Toda sexta-feira, PVC chega às oito da manhã na redação da ESPN, no bairro do Sumaré, em São Paulo. Sua mesa é um desabamento iminente: pilhas de jornais brasileiros e estrangeiros, livros, revistas esportivas européias e até um compêndio do congresso internacional dos árbitros de 2000. Tendo aberto algum espaço para o teclado respirar, PVC começa a fazer o que seus colegas apelidaram de ronda semanal: ligar para cada um dos vinte clubes da série A para saber como estão os times — ambiente geral, expectativas, contusões, suspensões, notícias de última hora. Fala com os assessores de imprensa ou, quando consegue, com o próprio técnico.

Os telefonemas não duram mais de três minutos. Não há migalha de conversa desperdiçada. O tom é baixo, quase um sussurro. 8h36, Grêmio: “E aí, Serginho? Tem algum problema? Qual a escalação? Vocês estão achando que conseguem se classificar para a Libertadores?” Desliga às 8h38. Atlético Mineiro: “Fala, Domênico, tudo certo? Vem cá, o Danilinho e o Rafael Miranda jogam?” Com o fone preso entre o ombro e o ouvido, simultaneamente responde a e-mails de leitores do seu blog. Um leitor o acusa de favorecer o Palmeiras numa disputa com o Fluminense para contratar o jogador Thiago Neves: “Eduardo, eu não torço para que o Thiago Neves vá para o Palmeiras. Minha torcida é para acompanhar bem o caso. Neste caso, tenho trabalhado como repórter. Você não compreendeu”. Liga para Zurique e fala com o principal assessor da FIFA, Andreas Herren. Quer detalhes da cerimônia em que o Brasil seria declarado país-sede da Copa de 2014. Palmeiras, 9h58: “E aí, Fábio? Ele treinou o Paulo Sergio por dentro ou pela lateral?”

Já são 10h e a redação está cheia. Num dos sete monitores ligados em canais de esporte, uma matéria informa que o Corinthians contratou dois pais-de-santo full time para evitar o rebaixamento para a segunda divisão. Alvoroço, risadas, aplausos. PVC é o único que não dá atenção. “Fala, Juca, só tem o Borges de fora, né?” Às 10h48, fala simultaneamente em dois telefones, aos quais se acrescenta, um minuto depois, um celular. Às 11h45, quinze minutos antes de entrar no ar, termina a checagem e digitação dos vinte times da primeira divisão que entrarão em campo na próxima rodada. Tudo estará à disposição no blog. Em menos de quatro horas, ele deu 61 telefonemas e conferiu a presença ou ausência em campo de 250 atletas.

Ao meio-dia, entra ao vivo no programa Bate Bola 1ª Edição. Como muitos o julgam um prodígio enciclopédico, ele é constantemente testado ao vivo com perguntas espinhosas. Do Rio Grande do Norte vem essa: “Qual o presidente da República que foi jogador de futebol?” PVC não sabe, e não se importa de admitir isso ao vivo. Havia dito a um colega: “Memória só é importante para não errar, para não dizer ‘o Corinthians de Gamarra e Luizão’” — dois jogadores que fizeram época no time paulistano, mas que se cruzaram na porta: quando um entrou o outro saiu. Informação serve para acertar.

Em outubro passado, ele e o narrador João Palomino buscavam um lugar nas cadeiras do Maracanã para plantar o tripé e transmitir o treino da seleção na véspera do jogo Brasil x Equador. A ordem vinda dos poderes constituídos do futebol exigia que os repórteres não descessem ao campo. Como sempre, a proibição previa — ou admitia — exceções. O repórter André Plihal, da ESPN, declarou: “Enquanto o reportariado da Globo estiver lá embaixo eu não saio”. De fato, o reportariado da Globo estava lá embaixo, indo e vindo pela beira do campo. Às tantas, do túnel de onde se esperavam os jogadores, emergiu Galvão Bueno. Era o único que dispensava crachá. Simpático, acenou para os colegas nas cadeiras. Um raiozinho de sol bateu em seu relógio de ouro, que brilhou intensamente, ofuscando um quero-quero. Os sem-campo se admiravam com sua desenvoltura. Conversou ao pé do ouvido do assessor de imprensa Rodrigo Paiva, fez um gesto para que o milenar supervisor Américo Faria viesse a seu encontro. (Num leve trote, Faria acolheu o pedido.) Com um sorriso filosófico, Palomino e PVC assistiam a tudo de longe. Eles formam uma espécie de exército de Brancaleone frente às divisões globais. Têm o entusiasmo dos vietcongues. São alegres.

Pelo fone de ouvido, alguém avisa que se passaram 2 599 dias desde a última partida da seleção no Maracanã. A informação é arquivada na memória. Um pouco mais tarde, ao vivo, Palomino perguntará a PVC: “O que os números 2-5-9-9 te lembram?” PVC responde: “São os dias que terão se passado desde a última apresentação da seleção aqui no Maracanã”. E acrescenta: “Foi a informação que o Paulo Andrade acabou de nos passar do estúdio”.

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