PVC na Piauí – Parte 2

Paulo Vinicius Coelho está com 38 anos. Seu rosto tem algo de divertido. Há um discreto parentesco com o personagem Wallace, do desenho animado Wallace e Gromit. Na vida prática, é atabalhoado. As alças da mochila que carrega nas viagens têm o dom de se agarrar a todo vão de porta que se meta no caminho; volta e meia, as pernas se adiantam apenas para serem atrapalhadas pelo tronco, que, de um repelão, é puxado para trás. Seu chefe na ESPN, o jornalista José Trajano, já perdeu a conta das vezes que PVC ligou o carro e saiu sem se lembrar das pilhas de jornais e cadernos deixados sobre a capota. Dizem que também não dirige muito bem. Nada disso atrapalha a vida dele. O seu negócio é conhecer futebol, e para cumprir essa função poucos estão tão bem equipados. “Ele é um fenômeno”, afirma o jornalista Juca Kfouri, “por causa da profunda capacidade de reter e processar informação.” PVC carrega na cabeça e nos seus arquivos um dos maiores mananciais de dados sobre futebol do país. Nos cinco dias que passou em Lima, quase nunca se separou da sua mochila de 10 quilos. O inventário do conteúdo revelaria: 1) livros: História de la Copa América (429 p.); En el Corazón del Pueblo. Pasión y Gloria de Alianza Lima (153 p.); La Grande Enciclopedia della Coppa del Mondo (450 p., capa dura); Todos os Jogos do Brasil (616 p.); 2) folhas soltas com anotações para o próximo compromisso da seleção: todos os jogos Brasil x Uruguai no Morumbi e todos os jogos do Brasil em São Paulo, além da ficha completa dos 26 jogadores convocados da Seleção Peruana; 3) DVD com todos os gols da era Dunga, acompanhados de análises e tabulações (gols tomados pela esquerda, direita, meio; marcados pela direita, esquerda, meio; gols marcados e tomados de bola rolando, contra-ataques, faltas, escanteios etc.); 4) computador e palm para armazenar apenas informações sobre o esporte.

A um simples toque, PVC é capaz de acessar a ficha completa de todos os jogos do campeonato brasileiro de 1971 para cá: data, placar, escalações, técnicos, substituições, árbitros, gols (e o minuto em que foram marcados), cartões amarelos e vermelhos, estádios, público. Ele mesmo digitou cada uma das fichas. O palm ainda armazena todas as convocações das seleções da Espanha, da Inglaterra, da França e da Itália de 2000 para cá e de Portugal, Alemanha, Argentina e Holanda de 2005 em diante. A cada rodada do campeonato brasileiro, PVC confere e armazena informações relativas a dez jogos, além de partidas da Liga dos Campeões da UEFA e das seleções nacionais de maior expressão que porventura tenham jogado naquela semana.

José Trajano passou boa parte dos primeiros anos de parceria dando broncas homéricas em PVC por causa dessa obsessão factual. Fazia isso no ar: “É que ele vinha com aquelas histórias de que ‘Nunca o São Paulo venceu o Náutico com gol no segundo tempo’ ou ‘Faz x anos que o Corinthians não vence Beltrano no inverno’. Eu dizia: ‘Ora, vai encher o saco do outro…’ Mas aí você começa a ver que aquilo é trabalho duro, que ele conversa com todo mundo, e então começa a respeitar”. Com o tempo, as broncas escassearam. PVC foi ganhando o público e hoje é praticamente um pop star. Nos estádios, os torcedores gritam seu nome. Com freqüência, a concorrência vem checar informação com ele. PVC nunca nega.

É natural que menino sonhe em ser astronauta, piloto de avião, pirata ou jogador de futebol. PVC sonhou em ser jornalista esportivo. A idéia se firmou por volta dos 14 anos, quando se deu conta de que o dia mais importante da sua vida eram as terças-feiras. Logo de manhã, ia montar guarda na banca de jornal, à espera da revista Placar, que devorava e redevorava ao longo da semana. Na mesma época, ganhou da mãe uma máquina de escrever. O pai era dono de uma padaria em São Bernardo, no ABC paulista, e a ética do trabalho — abrir a loja de madrugada, atender a freguesia até a noite — seria uma lição aprendida desde cedo. A máquina serviria para aprender datilografia e arrumar emprego. Paulo Vinicius — o apelido PVC surgiu anos mais tarde — trabalharia como office-boy de dia e estudaria à noite. Ele não foi atrás de emprego, mas aprendeu a datilografar. Instalou mesa e cadeira num vão embaixo da escada, introduziu uma folha branca na máquina, tabulou e, de cabeça, começou a datilografar a escalação completa dos doze grandes times do Brasil que haviam jogado na semana. Tornou-se exímio datilógrafo e formou-se em jornalismo.

PVC tem fé cega na informação. Talvez seja dos poucos comentaristas esportivos, se não o único, a nunca ter sido influenciado pelos grandes estilistas da crônica esportiva nacional. A elegância de Paulo Mendes Campos, o perfume da prosa de Armando Nogueira, a oralidade de João Saldanha, o sopro épico de Nelson Rodrigues, nada disso deixou marca. Com a possível exceção de Saldanha, esses homens são mais escritores do que cães farejadores. “Eu gosto do ‘romance’ do futebol, mas não é informação. Nelson Rodrigues escreve sobre as 120 mil almas do Monumental de Nuñez no dia do Brasil x Argentina. É bonito, só que não havia 120 mil almas, porque no Monumental nunca houve espaço para 120 mil almas.”

PVC sustenta que, com a televisão, a epopéia chegou ao fim. “Aquele grande jogador cujas jogadas geniais você só conhecia pelas descrições e não pelo olho, isso acabou.” Numa crônica para o Lance, escreveu: “Os ídolos eram exaltados em suas qualidades, porque os defeitos não estavam escancarados todos os dias. Não há deus que resista à superexposição da sua condição humana”. É como se os grandes jogadores do passado fossem essencialmente atores de teatro, e os novos, astros do cinema. Quem ia ao espetáculo teatral via algo fugaz, que desaparecia, e a beleza estava aí, pois permitia a fabulação. Com o ator de cinema, isso acaba. A jogada fica registrada para sempre e eventualmente não resistirá ao teste da realidade. O grande Rivaldo, com sua fala difícil, sua falta de carisma, morreu pelo cinema. “Na época do Nelson Rodrigues, ele seria um mito”, observa PVC.

Paulo Vinicius chegou à revista Placar com 21 anos. Era excessivamente tímido e dizia “tlinta-e-tlês”, problema com que só teria de se haver mais tarde, quando migrou para a TV. O jovem aspirante encontrou pela frente o redator-chefe Sergio Martins, responsável por desvendar, na década de 80, a máfia da loteria esportiva, uma das reportagens mais importantes sobre esportes no Brasil. De todas as pessoas com quem já trabalhou, Martins é a que mais o influenciou. “Ele me ensinou a escrever com todas as letras. Eu era um moleque e tentava florear. Ele cortava. Deixava o essencial, o que era informação.”

Com o rosto de quem virou muitas noites, Martins é desses jornalistas que dizem que a profissão acabou: “Ninguém vai mais ao estádio. Fazem matéria sem conversar com as pessoas, sem olhar no olho”. Quando conheceu PVC, identificou nele três virtudes e um defeito. “Ele era apaixonado pelo que fazia. Além disso, nunca foi malandrinho, queria vencer, mas nunca puxou o tapete de ninguém.” A terceira virtude era a memória: “Para um desmemoriado como eu, era fora do normal. Eu olhava aquilo com ceticismo e um certo ciúme. Ele me passava algum dado de cabeça e eu dizia: ‘Vai checar’. Ele dizia: ‘Mas eu sei’. ‘Vai checar.’ Ele estava certo 90% das vezes, mas o problema são os 10%. Quando ele acertava, era irritante: ‘Naquele Flamengo e Vasco de 52 fazia 28 graus no Maracanã, chovia e soprava um vento leste’. Pô, o cara nem era nascido! E eu vi esse jogo e não me lembro? Mas essa confiança excessiva na memória dele era ruim. Hoje ele ainda fala alguma bobagem na TV. Quase nunca, mas quando percebo eu digo comigo: ‘Você errou, cara’”.

Sergio Martins ensinou PVC a ser repórter. O pupilo reconhece: “Tive sorte de não virar comentarista cedo. Quando a gente começa a comentar, se acostuma logo a dar opinião”. Quando é convidado a falar a alunos de jornalismo, PVC tenta ser o Sergio Martins deles. “Os blogs são o futuro do jornalismo?”, alguém pergunta. “Não”, responde. “Os blogs são o perigo da opinião. Está todo mundo preocupado em falar das coisas. Mais importante é saber delas. Se algum dia eu disser a vocês ‘Quando eu era repórter’, me enterrem porque já morri.” Ligar para vinte clubes, por exemplo, ele acha “uma delícia”.

Na primeira semana de dezembro, PVC deu sete furos em quatro dias. Antes de toda a imprensa, revelou o nome dos novos técnicos do Corinthians, do Cruzeiro, do Vasco, do Atlético Mineiro e do Goiás, além da saída do técnico do Palmeiras e da transferência de um jogador importante do Botafogo para o São Paulo. Se escrevesse para a editoria de política, seria como revelar o novo ministério.

Ele entende sua obrigação profissional de maneira muito simples: transformar informação em conhecimento. O jornalista americano I. F. Stone dizia que fatos são subversivos. Para quem se acostumou a julgar futebol mais pela intuição do que pelo conhecimento, são mesmo.   Por exemplo, não há campeonato mundial de futebol em que os argentinos não apareçam como bichos-papões. PVC não nega que eles formem grandes times, mas, candidamente, profere uma heresia: nossos vizinhos são um verdadeiro fiasco em Copas do Mundo. Das 18 edições do campeonato, eles não participaram de quatro, foram eliminados na primeira fase em cinco, em outras cinco chegaram no máximo às quartas-de-final. Foram vice-campeões duas vezes, uma delas em 1930, a segunda em 1990, mas só chegando lá favorecidos por um sistema que hoje os teria eliminado na primeira fase. Finalmente, foram campeões duas vezes — a primeira, jogando em casa, com ajuda de generais e adversários suspeitos; a outra, graças a Maradona, um jogador irreproduzível. À luz fria dos fatos, a Argentina em Copas não é lá grande coisa.PVC assiste de sete a nove partidas por fim de semana, além dos jogos da Liga dos Campeões às terças e quartas. “São mais ou menos onze partidas das quais eu posso falar, pois compreendi o que aconteceu em campo.” Compreender implica não permitir distrações. “A maioria das pessoas vê futebol como a minha mãe: ‘E aí, filho? Como vai a vida?’ Já quando é filme, é aquele silêncio… O problema é que o ‘E aí, filho?’ acaba com o jogo. Tem que assistir que nem filme”, explica. Mesmo em dia de folga, PVC assiste às partidas de papel na mão, desenhando os esquemas táticos. Não é muito diferente do que faz no estádio. No jogo Brasil x Equador, no Maracanã, enquanto Robinho dava um dos dribles mais desconcertantes dos últimos anos, PVC permanecia apoiado sobre a bancada, o tronco inclinado para a frente, quase sem esboçar reação. (Sussurrou um “lindo” para a jogada do Robinho.) Seus olhos acompanhavam ora a defesa, ora o meio-campo, ora o ataque. À medida que os jogadores se movimentavam, espalhava seus respectivos números numa folha branca, para decifrar o padrão tático. Vez por outra, por educação, sorria tímido para torcedores que, das cadeiras, erguiam cartazes nos quais se lia “PVC, você é um animal”. Alguns apontavam para Dunga, como que para dizer que ele deveria estar no lugar do técnico da seleção.

Com o tempo, PVC desenvolveu o que, em música, corresponderia ao ouvido absoluto: a capacidade de, por assim dizer, reconhecer cada nota da partida. “Eu vejo o jogo e nos primeiros cinco minutos sei como o time joga. Isso é informação”, diz. José Trajano conta que PVC tem uma maneira própria de sofrer com as derrotas da seleção. “Ele fica furioso não com a derrota em si, mas com a maneira como o jogo foi perdido. Ele fica irritado com o erro tático.” Kfouri lembra que, por PVC ver tão bem uma partida, não são poucos os técnicos que ligam para ele atrás de opinião. “Tratam-no como é raro treinador tratar jornalista, ao menos do ponto de vista tático. Só ele e Tostão merecem tanta deferência.”

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